Planejamento Sucessório para Famílias Brasileiras com Companhias nas BVI
Sumário
Empresários e investidores brasileiros frequentemente utilizam companhias nas Ilhas Virgens Britânicas (BVI) para proteção patrimonial, flexibilidade e eficiência tributária. No entanto, quando um acionista falece, as ações são tratadas como propriedade situada nas BVI, desencadeando um processo sucessório local, a menos que um planejamento específico tenha sido implementado. Este artigo apresenta estratégias práticas para evitar o processo de inventário nas BVI, incluindo disposições de transmissão automática de ações e estruturas fiduciárias (trusts), ao mesmo tempo em que aborda as potenciais implicações fiscais brasileiras conforme a Lei nº 14.754/2023 e decisões judiciais recentes, como o RE 851.108. Uma estruturação adequada pode garantir uma transição suave da propriedade, minimizar tributos e proteger o patrimônio familiar ao longo das gerações.
1. Importância do Planejamento Sucessório nas BVI
De acordo com a BVI Business Companies Act, as ações de uma companhia registrada nas BVI são consideradas localizadas nas BVI. Com o falecimento de um acionista, as ações passam a integrar o espólio do falecido nas BVI e não podem ser transferidas até que o inventariante obtenha uma sentença de sucessão (grant of probate) ou cartas de administração (letters of administration) junto à BVI High Court. Mesmo que o falecido tenha deixado um testamento válido em outra jurisdição, o inventariante deverá obter uma sentença separada nas BVI. O processo leva, pelo menos, seis meses e honorários advocatícios podem chegar a dezenas de milhares de dólares. Para famílias brasileiras, o inventário nas BVI também pode suscitar questões relacionadas à legítima e aos herdeiros necessários, potencialmente gerando conflitos de leis e complicações adicionais. Evitar o processo de inventário exige mecanismos pré-estabelecidos que assegurem a transferência automática das ações da companhia em caso de falecimento.
Duas abordagens principais estão disponíveis, cada uma com variações: (1) mecanismos de sucessão societária — incorporando disposições de transmissão ou resgate automático no Memorandum and Articles of Association (“M&AA”) da companhia, por meio de classes de ações personalizadas; e (2) soluções baseadas em trusts — transferindo as ações para um trust de modo que o título legal já esteja registrado em nome do trustee no momento do falecimento.
2. Mecanismos de Sucessão por Classes de Ações sob a Lei das BVI
A BVI Business Companies Act concede ampla flexibilidade para criar múltiplas classes de ações com direitos e restrições distintos (Seções 9 e 28–37). Uma estrutura comumente usada é criar ações Classe A (detidas pela geração sênior) com plenos direitos econômicos e de voto, e ações Classe B (detidas pelos herdeiros) com expectativas de direito que se materializam no falecimento do titular das ações Classe A. Esse arranjo permite a sucessão sem necessidade de reemitir ações ou iniciar o processo de inventário. Embora seja eficiente e de baixo custo, é mais eficaz quando há poucos acionistas e herdeiros claramente identificados. Uma vez que múltiplos acionistas e ramos familiares estejam envolvidos, as disposições podem se tornar complexas. Alterar beneficiários posteriormente geralmente exige a emenda do M&AA ou o cancelamento e reemissão de ações, o que pode requerer o consentimento de outros acionistas. Além disso, como a mecânica depende inteiramente da BVI Companies Act, há certo risco legislativo — emendas futuras podem afetar a validade das disposições sucessórias.
3. Implicações Tributárias Brasileiras
Sob a perspectiva brasileira, qualquer plano sucessório envolvendo companhias das BVI deve considerar tanto o imposto de renda quanto o imposto estadual sobre herança (ITCMD). Embora as BVI não imponham tributos sobre herança ou ganhos de capital, o Brasil tributa ganhos de capital e variações cambiais sobre alienações, baixa ou liquidação dos investimentos no exterior. O Artigo 7º da Lei nº 14.754/2023 estabelece que ganhos de capital são reconhecidos quando um investimento em entidade estrangeira é alienado ou cancelado, inclusive por meio de devolução de capital. Alguns tributaristas brasileiros entendem que o resgate automático no falecimento pode ser interpretado como cancelamento de investimento, gerando incidência de imposto de renda sobre o ganho de capital (de 15 a 22,5%). Outros, provavelmente a corrente majoritária, entendem que não há evento tributável, pois não há ingresso de riqueza. Como ainda não há nenhum caso conhecido e nem uma posição da Secretaria da Receita Federal (SRF) sobre o tema, é esencial que seja feita uma estruturação cuidadosa.
Nada obstante a controvérsia sobre a possível inicidência de imposto sobre o ganho de capital, fato é que em casos de sucessão por morte, a legislação brasileira impõe ITCMD de até 8%. No entanto, no RE 851.108 (2021), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os estados não podem tributar heranças ou doações de bens localizados no exterior sem uma lei complementar federal. Em setembro de 2025, a Primeira Turma do STF reafirmou essa posição ao rejeitar a tentativa do Estado de São Paulo de aplicar ITCMD sobre doações no exterior. Isso cria uma lacuna tributária temporária: heranças ou doações de bens localizadas no exterior não estão sujeitas ao ITCMD até que o Congresso aprove nova legislação.
4. Estratégias Alternativas e Complementares
a. Doações de Ações em Vida — Doar ações ainda em vida pode evitar futura tributação de ganho de capital decorrente do falecimento. O doador pode estar sujeito ao ITCMD de até 8%, embora a decisão do STF temporariamente impeça sua aplicação sobre bens estrangeiros até que uma lei complementar seja promulgada. Em outubro de 2024, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 108/2024, que trata da tributação de bens no exterior, ainda pendente de aprovação no Senado e sanção presidencial. Por exemplo, São Paulo atualmente aplica uma alíquota de ITCMD de 4%, mas considera adotar um sistema progressivo com alíquotas de 2 a 8% (PL 7/2024), enquanto o Rio de Janeiro já aplica alíquotas progressivas entre 4% a 8%. Outro caso pendente no STF, o RE 1522312, reconhecido com repercussão geral em abril de 2025, decidirá se os doadores devem pagar imposto de renda sobre ganho de capital obtido na doação de bens como adiantamento de herança.
b. Classes de Ações Multigeracionais (Método em Cascata) — Essa estratégia envolve a criação de várias classes de ações com expectativa de direito (A, B, C etc.), nas quais apenas as ações Classe A são automaticamente resgatadas em caso de falecimento. As classes subsequentes são resgatadas apenas quando a classe anterior é voluntariamente vendida ou doada, postergando o imposto de renda brasileiro, pois o falecimento não constitui alienação tributável. O M&AA deve definir claramente os gatilhos de ativação e os valores de resgate (por exemplo, resgate ao custo, para evitar ganho de capital). Essa estratégia está em conformidade com a Seção 9 da BVI Companies Act e oferece flexibilidade de longo prazo, mantendo o controle dentro da família.
Observação: a implementação requer coordenação cuidadosa com as exigências do direito societário local e as regulamentações fiscais. A mecânica específica e os gatilhos de resgate são personalizados conforme a jurisdição e os objetivos familiares.
c. Estruturas de Trust — Os trusts continuam sendo o mecanismo mais flexível e confiável para evitar o inventário e assegurar o controle multigeracional. A legislação brasileira reconhece trusts estrangeiros, e trusts devidamente estruturados podem adiar a tributação conforme os Arts. 10 a13 da Lei nº 14.754/2023. Tipos comuns de trust incluem:
i. BVI VISTA Trust. Um VISTA Trust permite transferir as ações da sua companhia nas BVI para o Trust enquanto mantém controle operacional total. Você continua administrando o negócio exatamente como antes, enquanto o Trustee mantém as ações de acordo com suas instruções. Essa estrutura proporciona um planejamento sucessório contínuo para empresas familiares ativas com custos administrativos menores que os dos Trusts tradicionais. Uma companhia fiduciária privada controlada pela família pode atuar comoTtrustee para reduzir ainda mais as despesas.
ii. BVI Discretionary Trust. Essa estrutura transfere suas ações a um Trustee que distribui benefícios entre os beneficiários escolhidos (filhos, descendentes) a seu critério. O Trust evita o processo de inventário, perdura por várias gerações e se adapta às circunstâncias familiares. É ideal para famílias com múltiplos núcleos familiares, beneficiários internacionais ou situações que exigem forte proteção patrimonial. Um protetor pode supervisionar decisões relevantes do Trustee enquanto você fornece diretrizes por meio de uma carta de intenções (letter of wishes).
iii. U.S Trust. Uma alternativa eficaz à constituição de um trust nas BVI é considerar uma jurisdição norte-americana com legislação favorável aos Trusts, como Dakota do Sul, Nevada, Wyoming ou Flórida, que oferecem sólidos arcabouços jurídicos, maior privacidade e flexibilidade, permitindo aos clientes manter controle sobre investimentos e distribuições, além de utilizar entidades fiduciárias controladas pela família.
iv.Voting Trust. Múltiplos acionistas transferem seus direitos de voto a um Trustee enquanto mantêm todos os benefícios econômicos (dividendos, distribuições). O Trustee vota como um bloco unificado de acordo com seu acordo, evitando a fragmentação da propriedade e preservando o controle familiar. Diferente de outros Trusts das BVI, este pode ser regido pela legislação da Flórida e administrado por membros da família, reduzindo custos. As ações permanecem em Trust após o falecimento, evitando o inventário e mantendo a tomada de decisão unificada.
5. Escolhendo a Estratégia Sucessória Adequada
A estrutura ideal depende do tamanho da família, de seus objetivos e do equilíbrio desejado entre controle e flexibilidade. A sucessão via M&AA é mais adequada para estruturas simples de propriedade; o Método em Cascata de Ações é potencialmente mais vantajoso sob a ótica tributária brasileira e mais apropriado para estruturas familiares e patrimoniais complexas; o VISTA Trust é indicado para proprietários de empresas ativas; o Discretionary Trust se adapta a famílias com múltipos núcloes familiares; e o Voting Trust preserva o controle unificado, com eficiência de custos e flexibilidade na escolha da jurisdição. Esses métodos também podem ser combinados para maior flexibilidade.
Conclusão
Um planejamento sucessório eficaz nas BVI para famílias brasileiras requer a harmonização entre o direito societário, a eficiência tributária e a governança de longo prazo. Inserir disposições de transferência automática no M&AA de uma companhia pode ser eficaz em casos mais simples, enquanto as estruturas de Trust oferecem maior flexibilidade e proteção. O cenário tributário brasileiro em constante evolução — incluindo as decisões do STF sobre o ITCMD e a interpretação da Lei nº 14.754/2023 — exige monitoramento contínuo. As emendas à BVI Companies Act, com vigência a partir de 2 de janeiro de 2025, reforçam ainda mais a importância da conformidade e da transparência. Com uma coordenação internacional adequada, as famílias brasileiras podem garantir que suas companhias nas BVI sejam transferidas de forma eficiente para a próxima geração, preservando o controle, minimizando a carga tributária e protegendo o patrimônio.